Eu serei bom, por todas as vezes que eu não pude

We Heart It

Três horas de sono. Era o máximo que aquele homem dormia todos os dias. Ele esfregou os olhos, de um tom de azul pálido, e encarou o teto do quarto. Estaria completamente escuro se não fosse pela fraca luz da lamparina amarelada, acesa no criado-mudo ao lado da cama. As paredes verde musgo do minúsculo quarto estavam descascando. Garrafas de rum e algumas bebidas baratas espalhavam-se pelo chão, junto de folhas amassadas de projetos que o homem havia fracassado. Ele sentiu na boca o gosto amargo de seu hálito misturando-se à bebidas que ele já nem reconhecia.

Suspirou. Sentia um imenso vazio no peito. 

O homem levantou-se preguiçosamente, arrastando-se até o cômodo ao lado, um banheiro tão pequeno que mal cabia ele mesmo. Encarou seu reflexo no espelho, as olheiras profundas rodeando seus olhos, como se tivesse tomado um soco — melhor se tomasse mesmo —, uma cicatriz que atravessava a boca de alguma briga que já nem se lembrava mais. Às vezes, não conseguia lembrar até do próprio nome. David? Dave? Derek? Achava que era Dave. Não que importasse mais. Aquele homem, sozinho na velha casa de número 270, não era ninguém. Era invisível na vida das pessoas. Temia que algum dia algum corretor de imóveis invadisse sua casa, pensando que estivesse desabitada, e se deparasse com aquela pobre criatura.

Mas ele queria ser bom. Repetia várias vezes durante os dias, eu serei bom, mesmo sem saber o que aquilo significava. Ser bom para quê? Para o mundo? Amar o mundo como deve se considerar o certo? Ele não sabia. Só queria ser.

Encarar-se no espelho era como encarar o próprio demônio, e talvez ele realmente o fosse, pelos pecados, erros, cicatrizes abertas e lágrimas que não pertenciam a ele, mas foram causadas por ele. Todos esses anos, esse maldito passado obscuro que o fizera acabar naquela situação, o atormentava. Esses pecados que o fizeram tornar-se aquele ser vazio e sozinho.

Talvez, no fim das contas, ele merecesse isso.

Sabia que, por mais que quisesse que tudo acabasse, não acabaria. Ele continuaria assim.

Eu serei bom, murmurou. 

Bom para quem? Ele não sabia. Para ele mesmo? Talvez. Mas, algum dia, ele seria bom. E, enquanto não conseguisse entender como ser, ele continuaria vendo o demônio todas as manhãs, no espelho do banheiro daquela humilde casa, embebedando-se com aquelas bebidas do bar da esquina, fumando maços e mais maços de cigarro por dia, e dormindo três horas todo santo dia.

Eu vou ser bom por todas as vezes que eu não pude.



8 comentários:

  1. Você escreve muito bem, Laura. Me lembrou a frase "as pessoas não são más; elas só estão perdidas". Gostei muito da música ♥

    acid-baby.blogspot.com

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    1. Muito obrigada, Ana! Sim, conheço essa frase, tem bastante a ver. E nosso protagonista está bem perdido da vida, realmente. Amo a música, admiro muito o Jaymes. Ótimo, não? ♥

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  2. Texto de uma força impressionante! Deixou-me curiosa com relação ao passado do protagonista (e gosto dessa abertura para minhas próprias teorias). Parabéns por seu talento com a escrita!

    Abraços 😘

    As moscas na janela

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    1. Muito obrigada, Larissa! (É o nome da minha irmã, hihi) Fico feliz que tenha gostado. Também curto contos com essa abertura para teorias, fico louca imaginando, e quis passar isso na história também. Obrigada, de verdade. ♥

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  3. Gostei muito do texto, deixa-nos com vontade de saber um pouco mais! :) Beijinhos
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  4. Simpatizei com o personagem! Queria saber que passado é esse que tanto o condena. Você escreve muito bem, continue assim <3

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    1. Obrigada, Marina! Esse passado deixo para vocês, leitores, imaginarem. Fico mega feliz em saber que gostou ♥

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